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A livre iniciativa também é direito fundamental

A carta constitucional brasileira de 1988 possui forte viés social, contendo uma efusão de normas programáticas, autorizando uma série de intervencionismos estatais em “prol” de uma almejada “justiça social”. Contudo, ao mesmo tempo em que fizeram essas escolhas, os constituintes também fizeram esta: o capitalismo como sistema econômico.

Conquanto tais sistemas não sejam de todo excludentes, haja vista que o capitalismo consegue conviver com certa intervenção estatal, há de se convir que existem, sim, certos pontos sensíveis, donde surge o paradoxo presente em diversos Estados contemporâneos — quanto intervir? Se a intervenção for demasiada, o sistema econômico entra em colapso; se a intervenção for inexistente, certas agendas sociais ficam completamente desprestigiadas e distorções mercadológicas ligadas a monopólios e outras formas de domínio predatório podem ocorrer.

Nessa linha de raciocínio, o Estado precisa intervir nas relações entre os particulares, redistribuindo riquezas e protegendo aqueles considerados mais fracos nas relações jurídicas para propiciar uma igualdade fática, econômica e material entre as pessoas, ainda que isso implique em criar desigualdades jurídicas (no sentido de uns — os vulneráveis — terem mais direitos que outros — os não-vulneráveis). A função do Estado seria criar uma sociedade mais justa, solidária e igualitária, gentil para com todos, inclusive vulneráveis.

Por outro lado, essas mesmas constituições se valem do sistema capitalista como modus operandi na economia, o que demandaria, idealmente, que o Estado adotasse um modelo oposto ao supracitado, a saber, um sistema regulatório liberal, fundado em uma ordem econômica orgânica ou natural, com espaço para a livre movimentação do mercado e um Estado mínimo[1]. Nessa ordem de ideias liberais — e considerando que o Estado não produz nada, mas simplesmente consome como um parasita a riqueza que outros produzem —, a função primordial do governo deveria ser simplesmente a de manter um ambiente jurídico e regulatório estável e seguro (no sentido de previsível e calculável) e, no mais, deixar de entrar no caminho e não atrapalhar aqueles que estão efetivamente produzindo. É como disse Thoreau, no contexto dos Estados Unidos do século 19: “Esse governo nunca levou a cabo empreendimento algum, a não ser pela presteza com que deixa livre o caminho. Não é ele que mantém o país livre. Não é ele que coloniza o Oeste. Não é ele que educa. O caráter inerente ao povo americano é que fez tudo o que se conseguiu até agora, e teria feito ainda pouco mais, se o governo às vezes não atrapalhasse”.[2]

É claro que essa dicotomia contraditória gera um foco de intensos conflitos políticos, ideológicos e jurídicos. É um campo de batalha aparentemente sem fim: pensadores e militantes filiados aos mais variados tons de cinza entre a esquerda e a direita se digladiam, todos contra todos[3], em busca de uma verdade que não existe enquanto tal[4], mas sim enquanto criação humana.[5]

O fato é que entre os direitos e garantias fundamentais previstos na Constituição brasileira de 1988 está, também, o atualmente pouco prestigiado direito à livre-iniciativa.[6]

Os dispositivos constitucionais que preveem e tutelam o princípio da livre-iniciativa são os artigos. 1º, inciso IV, 5º, inciso XIII, e 170, caput, todos da Constituição Federal. Conforme bem explica Timm, “a livre-iniciativa assegura aos agentes econômicos, a priori, liberdade de atuação no mercado, podendo comprar e vender serviços sem interferências do Poder Público”. Ainda na esteira do defendido por esse autor, o desprestígio do direito à livre-iniciativa que existe hoje é muito infundado. Isso porque, independentemente do modelo de Estado capitalista adotado pelo Brasil — se liberal ou welfarista —, o fato é que, acima de tudo e conforme já mencionado, elegeu-se o capitalismo como sistema econômico vigente. E a livre-iniciativa é a roda motriz do capitalismo. Esse sistema econômico justamente pressupõe a livre-iniciativa. Há de se notar que essa discussão está em um nível anterior e mais profundo do que a existente entre intervencionismo programático mais ou menos acentuado. Embora seja indubitável que a Constituição brasileira tenha elegido um modelo social para regrar a ordem jurídica (vide os artigos 5º e seguintes da CF), é ainda mais indubitável que esse estado social de bem-estar está alicerçado em uma nação fundada sob a égide do sistema econômico capitalista. Ora, é o que diz o artigo 1º, inc. IV, da CF, isso sem falar na organização do sistema jurídico nacional como um todo, que permite claramente, via raciocínio indutivo, chegar à conclusão de que vige o capitalismo no Brasil.[7]

Nessa ordem de ideias, considerando que todas as normas constitucionais foram inseridas em um sistema que é capitalista, seria de se esperar que justamente aquelas normas que preservassem e impulsionassem esse sistema seriam aquelas com maior prioridade de aplicação no trato cotidiano do direito nacional. Não é o que se observa. A função social dos contratos em muitos casos tem servido precisamente para desfuncionalizar esses contratos, em vez de os tornar mais funcionais. A raiz desse problema — repetimos — é o desprestígio que vem recebendo o princípio da livre-iniciativa atualmente. Doutrinadores de muito respeito sustentam abertamente que a liberdade de iniciativa econômica privada “é legítima, enquanto exercida no interesse da justiça social”. “Será ilegítima, quando exercida com objetivo de puro lucro e realização pessoal do empresário[8].”

Com toda a vênia aos que pensam de forma semelhante, tal pensamento afronta as bases do sistema econômico e contradiz a própria natureza humana. As grandes invenções e empreendimentos que movem o mundo se originam da vontade das pessoas de vencer e se apropriar do fruto de seus empreendimentos. As grandes invenções não foram realizadas senão para satisfazer uma vontade de realização pessoal do inventor, seja em nome de uma satisfação pessoal, do desejo de alcançar renome e reconhecimento ou de lucrar e se tornar rico, ou qualquer combinação dessas e outras motivações.

O problema é inverter valores para rotular essa “ambição” como egoísmo e a transformar em algo torpe, abjeto, enfim, do mal. Na verdade, conforme sustentado no primeiro capítulo, independentemente das motivações do agente, suas ações geram um bem para a sociedade, pois instituem um clima de competição e uma urgência por realizações que é desejável para a evolução humana. Assim, tomar das pessoas o fruto daquilo que elas lutaram para conseguir, a pretexto de promover uma pretensa “justiça social” (!?), significa praticar o mais injusto ataque contra o mérito dos agentes econômicos, e desencorajar toda a corrida humana pela autossuperação, pela inovação, pela revolução. Felizmente, há autores que perceberam essa inversão de valores.

Nesse sentido, Humberto Theodoro Júnior asseverou, em um assomo de clareza, que “a função social que se atribui ao contrato não pode ignorar sua função primária e natural, que é a econômica”. “Não pode esta ser anulada, a pretexto de cumprir-se, por exemplo, uma atividade assistencial ou caritativa. Ao contrato cabe uma função social, mas não uma função de assistência social.” Nesse pensamento é acompanhado por Arnoldo Wald, que pontua, por sua vez, que

[…] a função social do contrato não deve ser interpretada como proteção especial do legislador em relação à parte economicamente mais fraca. Significa a manutenção do equilíbrio contratual e o atendimento dos interesses superiores da sociedade, que, em determinados casos, podem não coincidir com os do contratante que aderiu ao contrato. [9]

Não se pode instituir um Estado capitalista e, ao mesmo tempo, querer desfuncionalizar o capitalismo em que ele se baseia por meio da inserção de diversos mecanismos de intervenção que notoriamente possuem baixa eficiência. Apenas a título de esclarecimento, é claro que a livre-iniciativa — assim como qualquer outro princípio constitucional — não é absoluta: não se está postulando a libertinagem total e a ausência de fiscalização ou a derrogação das normas de conformação da atividade econômica às exigências ambientais, culturais, fiscais e trabalhistas que o mundo moderno impõe. Contudo, tais restrições devem incidir de modo a não prejudicar ou, pelo menos, de modo a impactar o mínimo possível no equilíbrio do mercado e no desenvolvimento econômico.

O mesmo vale para a edição de novos comandos legislativos: as leis que restrinjam inadequadamente os direitos de livre-iniciativa são inconstitucionais e devem ser expelidas do sistema, eis que cancerígenas a ele. Na esteira da indagação de Theodoro Júnior, “reconhece-se, modernamente — repita-se — que a liberdade de contratar deve-se comportar dentro da função social do contrato. Mas, que função social maior pode ter o contrato senão aquela que justifica sua existência: servir à circulação de riquezas, proporcionando segurança ao tráfego do mercado?”[10]

A partir daí fica claro que “a função social não pode ser entendida como um meio de destruir a função natural do contrato”. Nesse sentido ecoam as palavras de Arruda Alvim: “É preciso atentar e não vislumbrar nessa função social, lendo-a de tal forma a que viesse a destruir a própria razão de ser do contrato, em si mesma”. No caso, conforme explicitado, o correto desempenho da função natural do contrato torna imperativo o respeito à livre-iniciativa dos agentes econômicos.

A livre-iniciativa, portanto, é um direito fundamental — verdadeiro princípio sobre o qual estão fundados o capitalismo e, por tabela, o próprio Estado brasileiro. Essa supranorma garante liberdade aos agentes econômicos para que empreendam e floresçam como melhor lhes aprouver, tudo sob os auspícios da apropriação dos resultados de seus esforços, com isso gerando riquezas que, ao final e sob um intervencionismo mínimo do Estado, serão partilhadas por todos os partícipes daquela comunidade, seja porque a geração de riquezas virá acompanhada do consequente aumento de oportunidades e empregos, seja porque a geração de riquezas virá acompanhada de maior recolhimento fiscal e possibilitará a justiça distributiva de renda providenciada pelo Estado (que idealmente seria não corrupto, mínimo e eficiente).

*Este artigo é adaptação do capítulo 2 da tese de doutorado defendida por este autor em maio 2018 na Faculdade de Direito da USP (Universidade de São Paulo).

[1] TIMM, Luciano Benetti. O novo direito civil: ensaios sobre o mercado, a reprivatização do direito civil e a privatização do direito público. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2008, p. 98.

[2] THOREAU, Henry David. A desobediência civil [1849], In A desobediência civil [Civil Disobedience]. Tradução de José Geraldo Couto – São Paulo/SP: Penguin Classics Companhia das Letras, 2002, p. 8.

[3] Essa politização e maniqueísmo é tratada de forma contundente em: KARNAL, Leandro. Todos contra todos: o ódio nosso de cada dia. Rio de Janeiro: LeYa, 2017; HOBSBAWM, Eric J. Era dos extremos: o breve século XX: 1914-1991 [Ages of extremes: the short twentieth century, 1914-1991]. Tradução de Marcos Santarrita. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.

[4] A semiótica explica que tudo o que o homem conhece e pode conhecer é senão uma leitura parcial da realidade, eis que os humanos estão fadados a conhecer as coisas do mundo por meio de signos – representações da realidade cognoscíveis pelos sentidos e/ou instrumentos humanos –, de modo que uma verdade universal, se é que existe, estará eternamente fora do alcance da humanidade, rebus sic stantibus. Nesse sentido, v. SILVEIRA, Lauro Frederico Barbosa da. Curso de semiótica geral. São Paulo: Quartier Latin, 2007; ARAÚJO, Clarice Von Oertzen de. Semiótica do direito. São Paulo: Quartier Latin, 2005.

[5] Entre outros pensadores, destaca-se que a obra inteira de Nietzsche aborda esse ponto, a transvaloração de todos os valores, pois todos os valores não passam de criações humanas e, portanto, são relativos. Nesse sentido, ver, por todos, NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. Além do bem e do mal [Jenseits von Gut und Böse. Vorspiel einer Philosophie der Zukunft, 1886]. Tradução Paulo César Lima de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.

[6] Cenário que talvez comece a ser alterado. O julgamento da ADPF n. 324 e do RE n. 958.252 pelo STF, que versam sobre a terceirização da atividade fim, foi um exemplo sinalizador nesse sentido, pois a linha mestra da posição vencedora parte da premissa de que a livre iniciativa como direito fundamental. A íntegra dos julgados ainda não foi disponibilizada. Para mais informações, v. BRASIL. Supremo Tribunal Federal (STF). Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) n. 324/DF. Rel. Min.: Luís Roberto Barroso. Req: Associação Brasileira do Agronegócio. Plenário. Brasília: Portal de Jurisprudência do STF, 31 ago. 18 e BRASIL. Supremo Tribunal Federal (STF). Recurso Extraordinário (RE) n. 958.252/MG. Rel.: Luiz Fux. Celulose Tipo Brasileira S/A – CENIBRA vs. MPT e outro. Plenário. Brasília: Portal de Jurisprudência do STF, 31 ago. 2018.

[7] O capitalismo é o sistema econômico adotado implicitamente pela Constituição. Exemplificativamente, remete-se aos seguintes artigos: “Art. 219. O mercado interno integra o patrimônio nacional e será incentivado de modo a viabilizar o desenvolvimento cultural e socioeconômico, o bem-estar da população e a autonomia tecnológica do País, nos termos de lei federal. Parágrafo único. O Estado estimulará a formação e o fortalecimento da inovação nas empresas, bem como nos demais entes, públicos ou privados, a constituição e a manutenção de parques e polos tecnológicos e de demais ambientes promotores da inovação, a atuação dos inventores independentes e a criação, absorção, difusão e transferência de tecnologia”. Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre-iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios: I – soberania nacional; II – propriedade privada; III – função social da propriedade; IV – livre concorrência; V – defesa do consumidor; VI – defesa do meio ambiente, inclusive mediante tratamento diferenciado conforme o impacto ambiental dos produtos e serviços e de seus processos de elaboração e prestação; VII – redução das desigualdades regionais e sociais; VIII – busca do pleno emprego; IX – tratamento favorecido para as empresas de pequeno porte constituídas sob as leis brasileiras e que tenham sua sede e administração no País. Parágrafo único. É assegurado a todos o livre exercício de qualquer atividade econômica, independentemente de autorização de órgãos públicos, salvo nos casos previstos em lei”. BRASIL. CF 1988. Brasília: Congresso Nacional (Poder Constituinte), out/88.

[8] AFONSO DA SILVA, José. Curso de direito constitucional positivo. 37ª ed. São Paulo: Malheiros, 2014, p. 806.

[9] WALD, Arnoldo. A evolução do contrato no terceiro milênio e o novo Código Civil. In: ALVIM, Arruda et al. Aspectos controvertidos do novo Código Civil. São Paulo: RT, 2003. p. 72.

[10] THEODORO JÚNIOR, Humberto. O contrato e sua função social, 4ª ed., rev., atual., e ampl. – Rio de Janeiro: Forense, 2014, p. 121.