O sistema penitenciário nacional foi declarado em “estado de coisas inconstitucional”, conforme decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento da ADPF nº 347/MC, de relatoria do então ministro Marco Aurélio Mendes de Farias Mello.
No julgado em questão, ocorrido no ano de 2015, foi reconhecido como presente um quadro de violação massiva e persistente de direitos fundamentais, decorrente de falhas estruturais e da falência de políticas públicas, cuja modificação depende da implementação de medidas abrangentes de natureza normativa, administrativa e orçamentária, merecendo pronta intervenção do Poder Judiciário com vistas a garantir a necessária proteção dos direitos fundamentais.
Nesse contexto, questiona-se: cabe ao Judiciário impor à Administração Pública a obrigação de executar obras em estabelecimentos prisionais, a fim de garantir a observância dos direitos fundamentais de pessoas sob custódia do Estado?
Em outras palavras, indaga-se se, tendo em conta as precárias condições materiais em que se encontram as prisões brasileiras e considerando a delicada situação orçamentária na qual se debatem os entes federados, estariam os juízes e tribunais autorizados a determinar ao administrador público a tomada de medidas ou a realização de ações para fazer valer, com relação aos presos, o princípio da dignidade humana e os direitos que a Constituição Federal (BRASIL, 1988) lhes garante.
O tema, como logo se percebe, é deveras relevante e, por isso, tem gerado intensas discussões doutrinárias e jurisprudenciais, não havendo uniformidade de posicionamentos.
Contudo, a despeito das divergências instauradas, o próprio Supremo Tribunal Federal pontificou que é lícito ao Judiciário impor à Administração Pública a obrigação de promover medidas ou executar obras emergenciais em estabelecimentos prisionais para assegurar o respeito à integridade física e moral dos detentos, mormente em razão da supremacia da dignidade da pessoa humana, sem que disso decorra ofensa aos princípios da reserva do possível e/ou da separação dos poderes.
A orientação adotada pelo Excelso Pretório, é importante registrar, foi reforçada no julgamento do RE 592.581/RS, realizado sob o apanágio da repercussão geral (Tema 220), cuja ementa restou assim redigida:
“REPERCUSSÃO GERAL. RECURSO DO MPE CONTRA ACÓRDÃO DO TJ-RS. REFORMA DE SENTENÇA QUE DETERMINAVA A EXECUÇÃO DE OBRAS NA CASA DO ALBERGADO DE URUGUAIANA. ALEGADA OFENSA AO PRINCÍPIO DA SEPARAÇÃO DOS PODERES E DESBORDAMENTO DOS LIMITES DA RESERVA DO POSSÍVEL. INOCORRÊNCIA. DECISÃO QUE CONSIDEROU DIREITOS CONSTITUCIONAIS DE PRESOS MERAS NORMAS PROGRAMÁTICAS.INADMISSIBILIDADE. PRECEITOS QUE TÊM EFICÁCIA PLENA E APLICABIILIDADE IMEDIATA. INTERVENÇÃO JUDICIAL QUE SE MOSTRA NECESSÁRIA E ADEQUADA PARA PRESERVAR O VALOR FUNDAMENTAL DA PESSOA HUMANA. OBSERVÂNCIA, ADEMAIS, DO POSTULADO DA INAFASTABILIDADE DA JURISDIÇÃO. RECURSO CONHECIDO E PROVIDO PARA MANTER A SENTENÇA CASSADA PELO TRIBUNAL.
I – É lícito ao Judiciário impor à Administração Pública obrigação de fazer, consistente na promoção de medidas ou na execução de obras emergenciais em estabelecimentos prisionais.
II – Supremacia da dignidade da pessoa humana que legitima a intervenção judicial.
III – Sentença reformada que, de forma correta, buscava assegurar o respeito à integridade física e moral dos detentos, em observância ao art. 5º, XLIX, da Constituição Federal.
IV – Impossibilidade de opor-se à sentença de primeiro grau o argumento da reserva do possível ou princípio da separação dos poderes.
V – Recurso conhecido e provido.” (STF – RE 592.581. rel.: min. RICARDO LEWANDOWSKI. Tribunal Pleno. Julg.: 13/8/2015. ACÓRDÃO ELETRÔNICO REPERCUSSÃO GERAL)
Veja-se, portanto, que malgrado existam vozes destoantes, o entendimento que mais se harmoniza com a realidade constitucional é aquele que admite o Poder Judiciário determinar que a Administração Pública adote medidas visando assegurar direitos constitucionalmente reconhecidos como essenciais, sem que isso configure violação do princípio da separação dos poderes e/ou reserva do possível.
Até porque, verdade seja dita, e isso já foi reconhecido pelo STF, as condições em que se acham os presos não apenas revelam situação incompatível com diversos preceitos da Carta Magna (BRASIL, 1988), em especial os contidos nos artigos 1º, III, e 5º, XLIX, como também se contrapõem a dispositivos legais específicos sobre o assunto, notadamente os artigos 3, 40 e 85, da Lei 7.210/1984 — Lei de Execução Penal (BRASIL, 1984), que assim dispõem in verbis:
“Artigo 3º — Ao condenado e ao internado serão assegurados todos os direitos não atingidos pela sentença ou pela lei.
Parágrafo único. Não haverá qualquer distinção de natureza racial, social, religiosa ou política.
Artigo 40 — Impõe-se a todas as autoridades o respeito à integridade física e moral dos condenados e dos presos provisórios.
Artigo 85 — O estabelecimento penal deverá ter lotação compatível com a sua estrutura e finalidade.
Parágrafo único. O Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária determinará o limite máximo de capacidade do estabelecimento, atendendo a sua natureza e peculiaridades.”
Como se vê, a Lei de Execução Penal (BRASIL, 1984), por meio dos dispositivos acima referidos, assegura aos condenados e internados em geral todos os direitos não atingidos pela sentença ou pela lei. Impõe, ademais, a todas as autoridades o respeito à integridade física e moral dos custodiados, inclusive, dos presos provisórios.
Além disso, existem normas regulamentares constantes da Resolução nº 14 de 1994 (BRASIL, 1994), do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária (CNPCP), órgão vinculado ao Ministério da Justiça, cuja competência encontra-se definida no artigo 64 da LEP (BRASIL, 1984), as quais devem ser obrigatoriamente respeitadas quanto aos presos.
A mencionada resolução fixa as regras mínimas para o tratamento de presos no Brasil, assim dispondo em seus arts. 1º, 3º, 7º, 8º, 9º, 10 e 13:
“Artigo 1º — As normas que se seguem obedecem aos princípios da Declaração Universal dos Direitos do Homem e daqueles inseridos nos Tratados, Convenções e regras internacionais de que o Brasil é signatário devendo ser aplicadas sem distinção de natureza racial, social, sexual, política, idiomática ou de qualquer outra ordem.
Artigo 3º — É assegurado ao preso o respeito à sua individualidade, integridade física e dignidade pessoal.
Artigo 7º — Presos pertencentes a categorias diversas devem ser alojados em diferentes estabelecimentos prisionais ou em suas seções, observadas características pessoais tais como: sexo, idade, situação judicial e legal, quantidade de pena a que foi condenado, regime de execução, natureza da prisão e o tratamento específico que lhe corresponda, atendendo ao princípio da individualização da pena.
Artigo 8º — Salvo razões especiais, os presos deverão ser alojados individualmente.
§1º. Quando da utilização de dormitórios coletivos, estes deverão ser ocupados por presos cuidadosamente selecionados e reconhecidos como aptos a serem alojados nessas condições.
§2º. O preso disporá de cama individual provida de roupas, mantidas e mudadas correta e regularmente, a fim de assegurar condições básicas de limpeza e conforto.
Artigo 9º — Os locais destinados aos presos deverão satisfazer as exigências de higiene, de acordo com o clima, particularmente no que ser refere à superfície mínima, volume de ar, calefação e ventilação.
Artigo 10º — O local onde os presos desenvolvam suas atividades deverá apresentar:
I – janelas amplas, dispostas de maneira a possibilitar circulação de ar fresco, haja ou não ventilação artificial, para que o preso possa ler e trabalhar com luz natural;
II — quando necessário, luz artificial suficiente, para que o preso possa trabalhar sem prejuízo da sua visão;
III — instalações sanitárias adequadas, para que o preso possa satisfazer suas necessidades naturais de forma higiênica e decente, preservada a sua privacidade.
IV — instalações condizentes, para que o preso possa tomar banho à temperatura adequada ao clima e com a freqüência que exigem os princípios básicos de higiene.
Artigo 13 — A administração do estabelecimento fornecerá água potável e alimentação aos presos.
Parágrafo Único – A alimentação será preparada de acordo com as normas de higiene e de dieta, controlada por nutricionista, devendo apresentar valor nutritivo suficiente para manutenção da saúde e do vigor físico do preso.”
Não se pode perder de vista, ademais, que o artigo 5º, §2º, da Carta Magna (BRASIL, 1988) consigna que os direitos e garantias nela previstos não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios adotados em seu texto, ou dos tratados internacionais em que o Brasil seja parte, valendo destacar, por todos: 1) a Declaração Universal dos Direitos Humanos (artigos 5º, 6º, e 8º); 2) o Pacto Internacional Sobre Direitos Civis e Políticos (artigos 7º e 10º); e, 3) a Convenção Americana Sobre Direitos Humanos (artigo 5º).
Referidas normas, convém lembrar, possuem natureza supralegal, conforme decisão da Suprema Corte, tomada no julgamento conjunto, dentre outros, dos Recursos Extraordinários 466.343/SP e 349.703/RS.
Deve ser mencionada, ainda, como bem feito pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento do já mencionado RE 592.581/RS, a existência das Resoluções 663 C (XXIV) e 2.076 (LXII), aprovadas pelo Conselho Econômico e Social das Nações Unidas em 1957 e 1977, respectivamente, após a realização, em Genebra, do Primeiro Congresso das Nações Unidas sobre a Prevenção do Crime e o Tratamento dos Delinquentes, em 1955, que estabelecem Regras Mínimas para o Tratamento de Reclusos, dentre as quais:
“9. 1) As celas ou locais destinados ao descanso noturno não devem ser ocupados por mais de um recluso. Se, por razões especiais, tais como excesso temporário de população prisional, for necessário que a administração penitenciária central adote exceções a esta regra, deve evitar-se que dois reclusos sejam alojados numa mesma cela ou local.
10. As acomodações destinadas aos reclusos, especialmente dormitórios, devem satisfazer todas as exigências de higiene e saúde, tomando-se devidamente em consideração as condições climatéricas e especialmente a cubicagem de ar disponível, o espaço mínimo, a iluminação, o aquecimento e a ventilação.”
Gize-se que embora não possam ser caracterizadas como “tratado internacional” no sentido estrito do termo, as mencionadas Resoluções vêm sendo reconhecidas como norma complementar e meio de interpretação dos tratados sobre o tema, como destaca o ex-relator especial das Nações Unidas para a Tortura, Sir Nigel Rodley (NIGEL, 1999), para quem:
“As Regras Mínimas podem servir de guia para a interpretação da exigência geral do artigo 10 (1) do Pacto (Internacional dos Direitos Civis e Políticos) de tratamento humano e respeito pela dignidade humana, assim como em relação à exigência específica do artigo 10 (3) do Pacto que afirma que ‘O regime penitenciário consistirá em um tratamento cujo objetivo principal seja a reforma e reabilitação moral dos prisioneiros’.”
De tudo isso se extrai, portanto, que existe todo um complexo normativo de índole interna e internacional, que exige a pronta ação do Judiciário para recompor a ordem jurídica violada, em especial para fazer valer os direitos fundamentais — de eficácia plena e aplicabilidade imediata — daqueles que se encontram sob a custódia do Estado.
Destaque-se, nesse particular, que não se cuida de implementação direta, pelo Judiciário, de políticas públicas, amparadas em normas programáticas, supostamente abrigadas na Carta Magna (BRASIL, 1988), em alegada ofensa ao princípio da reserva do possível.
Ao revés, trata-se do cumprimento da obrigação mais elementar deste Poder que é, justamente, a de dar concreção aos direitos fundamentais, abrigados em normas constitucionais, ordinárias, regulamentares e internacionais.
Ora, a reiterada omissão do Estado brasileiro em oferecer condições de vida minimamente digna aos detentos exige uma intervenção enérgica do Judiciário para que, pelo menos, o núcleo essencial da dignidade da pessoa humana lhes seja assegurada, não havendo margem para qualquer discricionariedade por parte das autoridades prisionais no tocante a esse tema.
Nesses termos, concluindo, diante da violação das normas constitucional, internacional e infraconstitucional afetas aos direitos à saúde, ao saneamento básico e a viver em ambiente sadio e ecologicamente equilibrado, caracterizado como verdadeiro estado fático de natureza inconstitucional, resta clara a possibilidade de pronta intervenção judicial para o afastamento e superação desse estado inconstitucional de coisas, cabendo aos legitimados valerem-se dos mecanismos processuais lhe colocados à sua disposição.
REFERÊNCIAS.
BRASIL. CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL DE 1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm.
BRASIL. DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS HUMANOS. Disponível em: https://www.unicef.org/brazil/declaracao-universal-dos-direitos-humanos.
BRASIL. DECRETO N.º 592, DE 6 DE JULHO DE 1992. Atos Internacionais. Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos. Promulgação. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1990-1994/d0592.htm.
BRASIL. DECRETO N.º 678, DE 6 DE NOVEMBRO DE 1992. Promulga a Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica), de 22 de novembro de 1969. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/d0678.htm.
BRASIL. LEI N.º 7.210, DE 11 DE JULHO DE 1984. Institui a Lei de Execução Penal. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l7210.htm.
BRASIL. RESOLUÇÃO Nº 14, DE 11 DE NOVEMBRO DE 1994. Resolve fixar as Regras Mínimas para o Tratamento do Preso no Brasil. Disponível em: https://www.gov.br/depen/pt-br/composicao/cnpcp/resolucoes/1994/resolucaono14de11denovembrode1994.pdf/view.
BRASIL. SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. RE 466.343/SP, rel. ministro CEZAR PELUSO, julgado em 3/12/2008, DJ 5/6/2009.
BRASIL. SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. RE 349.703/RS, rel. ministro AYRES BRITTO, julgado em 3/12/2008, DJ 5/06/2009.
BRASIL. SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. ADPF 347/MC, rel. ministro MARCO AURÉLIO MELLO, julgado em 9/9/2015, DJ 19/2/2016.
BRASIL. SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. RE 592.581/RS, rel. ministro RICARDO LEWANDOWSKI, julgado em 13/8/2015, DJ 25/8/2015.
RODLEY, Nigel. The Treatment of Prisoners Under the International Law. Oxford: Oxford University Press, 1999, pp. 294-5 (em inglês no original).